O raposo pai apenas cerrava os olhos, dolorosamente. O queixo estremeceu um pouco conforme engolia o choro, fazia um esforço monumental para não ceder àquele desejo.
-Voltar? Yumi, eu não tenho sequer o direito de ser chamado de pai, quanto mais de voltar a uma forma física...
Estendeu o olhar a Venkar, de forma terna. O olhar do raposo, apesar de sereno, parecia quase ser capaz de atravessar o dragão, como se analizasse cada parte de seu ser, quase como se pudesse ver claramente o elo entre ele e Yumi, em seus vários níveis. Uma sensação um pouco desconfortante talvez, para o dragão.
-Então ele se chama Venkar...eu o conheci, de certa forma, embora ele provavelmente não se deu conta de minha presença, anos atrás. Que ironia do destino, trazer aqui tantas “vítimas” de meus erros...erros dos quais apenas pude notar agora, quando entrei no Grimório de Gelo...o artefato que deixei como herança para Yumi, contendo tudo o que sei em magias de gelo...
O raposo suspirou, desfazendo o abraço aos dois filhos, erguendo-se e virando as costas.
-Tetsuya provavelmente puxou esse aspecto de mim. Ele também se julga indigno de receber qualquer apreço ou afeto àqueles que julga ter ferido de forma tão profunda...algo facilmente mal compreendido com outros sentimentos...mas temo que a teimosia e dificuldade de se expor, e compartilhar seu sofrimento interno seja da mãe.
E desviou o olhar a Artemia, esboçando um fraco sorriso, como se explicasse de forma vaga o comportamento do filho diante dela. Não detalhava muito, deixaria que ambos resolvessem aquilo, mas procurava ao menos tirar a certeza de desafeto entre ambos por uma dúvida quanto ao sentimento alheio. O raposo baixou a cabeça.
-Eu sequer sei por onde começar, sr. Axle. Mas posso dizer que o livro que Yumi resgatou do inferno possui um fragmento de minha alma e, com ela, parte de minha memória. Memória que estava mais feliz em não rever, mas não podemos fugir de nosso passado, quando ele nos assombra no presente.
E suspirou, tomando ar para o que iria dizer a seguir.
- O ponto de partida seria foi minha curiosidade, como MH, de como UOLCity sempre foi uma espécie de epicentro de calamidades. Kitsunes são curiosos e facilmente levados aos caminhos da magia e seus estudos. Quando decidi ir ao inferno para buscar mais informações, vi o caos que vivia lá, não tão diferente ao que humanos sofriam aqui. Abuso de poder, destruição, guerras...por solidariedade, procurei melhorar o círculo infernal em que fazia minhas pesquisas.
Conforme o tempo passou, descobri sobre as ruinas da cidade no subsolo da cidade. Como puderam ver, há um circulo de magia gigantesco, com um tipo de magia nunca vista antes. Vi runas de criaturas híbridas, que pareciam meio demônio, meio anjos...ao mesmo tempo em que fui ganhando influencia e poder no inferno, basicamente todos os overlordes infernais começaram a se voltar contra mim, em minha empreitada de extinguir a escravidão entre demônios, estimular o comércio e a democracia no círculo infernal, além de tomar o lugar de Hel como overlorde de Niflheim como conhecem os humanos, ou simplesmente 5º Circulo infernal.
-Neste meio tempo, entre lutas para proteger os demônios que ali viviam, conheci Yuki, mãe de Yumi. E entre os conflitos, Belphegor, Overlorde do 4º circulo tomou sua vida...e fui forçado a esconder minha paternidade de Yumi para protege-la. Não buscariam-na se não soubessem que partilhava de meu sangue. Este foi meu primeiro erro...
-A necessidade por aliados e o circulo magico me motivaram a fazer algo que ninguém havia tentado antes: estabelecer relações com o Céu. Tão logo pisei perto dos portões celestiais, fui recebido com uma força-tarefa especial, liderada por Iriel, serafim responsável por eles. Depois de quase nos matarmos, pouco a pouco consegui explicar-lhe minha situação. Ela era desconfiada como Tetsuya e não se abria muito, mas ao menos pudemos conversar. Expliquei toda a situação e, para minha sorte, ela também tinha interesse em pesquisas.
-Levei-a ao circulo, mostrei-lhe todo o fruto de minhas pesquisas, e depois de algum tempo passamos a pesquisar juntos. Não compreendíamos nada, mas precisaríamos criar um híbrido para tentar compreender bem o que se passava...mas havia um porém: a energia demoníaca e celestial são antíteses, uma criatura dotada de ambas sofreria de forma inimaginável, caso tivesse a chance de sobreviver...- e desviou o olhar brevemente a Artemia, mas logo voltou à conversa.
-Dessa forma, teríamos que buscar novas informações, novas fontes de conhecimento. E abrimos portais para mundo paralelos. Um deles se mostrou bastante promissor, e estabelecemos elos comerciais e de pesquisa. Haviam incontáveis feiticeiros que usavam a energia mística de dragões, e só então percebi o erro que cometemos...praticamente estimulamos a caça predatória a esses seres naquele plano, num lugar em que já eram caçados....quando percebi meu erro, tentei criar portais em vários lugares para garantir a fuga para o inferno ou para a Terra. Venkar foi um dos últimos que vi passar, mas logicamente eu não o conhecia, e ocultei minha presença para que não me identificassem. Depois disso, cortei qualquer relação com os magos daquele lugar. Não queria ser o responsável pela extinção dos dragões...e este foi o meu segundo erro.
-Iriel teve mais sorte, estabelecendo relações com seres feitos de magia pura, os elementais. Neste processo, acabou estimulando a vinda de vários magos planares a UOLCity. Um dos mais promissores era Baltazar Messast....mas os detalhes do que ocorreu ainda me fogem à memória.
-Depois de tantas pesquisas, mais erros que acertos, eu e Iriel acabamos nos aproximando, e tivemos um filho, a contragosto de vários anjos, como devem imaginar. Mas era uma gestação quase impossivel...usamos o fruto de nossas pesquisas para pelo menos permitir a vida de nosso filho. Mas a magia tão inerente aos anjos e a nós, kitsunes, fora completamente alterada em Tetsuya para que pudesse viver...não conseguiríamos suportar um aborto. Fomos forçados a convertê-lo num anti-mago à força, ainda dentro do ventre de Iriel. Quase todo o potencial mágico de meu filho é o de negar, banir e drenar magia....Ocasionalmente kitsunes podem nascer assim, mas são vistos como ovelhas negras....imagine o que é para uma raça de magos ser um anti-mago? Este foi nosso terceiro erro.
-Tetsuya foi então criado e cresceu no céu, por eu julgar ser mais seguro que o inferno, ainda em guerra. Meus elos com Iriel, porém, fomentaram uma xenofobia extrema entre anjos....grupos radicais tentaram instilar a guerra entre céu e inferno novamente. Lembro-me de Iriel me contar sobre muito de sua pesquisa ter sido roubado por estes grupos. Ela própria desvendou que estavam criando uma arma capaz de amplificar o poder angelical, uma espécie de canhão de luz divina. E também estavam desenvolvendo armas para converter humanos, e até mesmo demônios em anjos...afinal, que melhor forma de acabar com seus inimigos que convertendo-os?Mas naquela época não demos muita atenção....era algo muito teórico, absurdo e improvável que conseguissem isso de fato. Esse foi nosso quarto erro, o que explica o que houve aqui hoje....
O anjo apenas observava a tudo, em silencio como Tetsuya. Simplesmente franziu o cenho, acumulou saliva e cuspiu na direção do rosto de Axle. Era claro o ódio que vibrava em seus olhos.
-Prefiro morrer a dizer-lhes qualquer coisa....
Tetsuya, por sua vez, apenas olhava para cima, confuso, perplexo, de certa forma desamparado. Se o choque de ver sua mãe morrer novamente diante de seus olhos lhe tiraram a voz, o que dizer de tudo o que lhe era revelado naquele momento? O raposo-filho estendeu a mão à espada que Axle cravara perto de si, como que para certificar-se do que o pai lhe dizia. Uma luz pálida, fraca, parecia ser emitida do contato entre a mão e o cabo da espada; Axle provavelmente nao perceberia nada, mas quase imediatamente a aura de Tetsuya desaparecia por completo, ficando sem qualquer tipo de presença magica - exatamente como o reploid ali. Nada de mal parecia ocorrer ao mestiço, mas parecia claro que a espada tinha a mesma natureza de contra-magia que o raposo.
Para Yumi aquilo poderia ser um choque e tanto, principalmente pelo aspecto de marginalização de kitsunes daquele tipo...mas também fazia sentido o fato do irmão ter 9 caudas e não demonstrar qualquer energia mágica compativel com elas, teoricamente comparável ao pai. Flashes de "pistas" que ela nao percebeu antes iam aparecendo na memória aos poucos encaixando como um quebra-cabeças. Como por exemplo a forma como, sem querer, ele anulara o circulo de proteção na porta da Casa sem Janelas que Iriel fizera para proteger os dois. Ou ainda, como no desespero conseguira desfazer a luz divina que inundara aquela casa instantes atrás. E se pensasse que de certa forma um portal nada mais era do que enfraquecer as barreiras entre dois planos, fazia sentido a facilidade de Tetsuya em ir para o inferno atrás de Artemia quando ela se sacrificou.